RBSS | O novo protagonismo da NIP na regulação da ANS: desafios das operadoras diante da regulação responsiva
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- 24 de set.
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Publicado por Revista Brasileira de Saúde Suplementar (Instituto de Estudos de Saúde Suplementar) | 24/6/2025 | Clique aqui e veja o conteúdo original
Por Aline Gonçalves Lourenço, advogada especializada em Direito Regulatório do Bhering Cabral Advogados (BHC)
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) tem promovido, nos últimos anos, uma transformação significativa em seu modelo de fiscalização. O tradicional enfoque na estrutura dos canais de atendimento e na aderência formal aos normativos está sendo gradualmente substituído por uma lógica orientada à performance e à experiência do beneficiário.
Esse novo paradigma ganha corpo com a Resolução Normativa nº 623/2024, que entrará em vigor em julho de 2025, e reposiciona a Notificação de Intermediação Preliminar (NIP) como instrumento central na avaliação regulatória. A norma redefine a função da NIP ao torná-la insumo primário para a construção de dois dos mais importantes indicadores: o Índice Geral de Reclamações (IGR) e o Monitoramento da Garantia de Atendimento (MGA). O IGR, antes um indicador meramente informativo, passa a gerar consequências regulatórias concretas, inclusive financeiras e reputacionais.
O novo modelo estabelece metas explícitas de desempenho e institui mecanismos automáticos de incentivo e penalidade. Operadoras que atingirem níveis de excelência — por exemplo, IGR igual ou inferior a 2,4 nos planos médico-hospitalares —poderão obter redução de até 80% nas multas. Em contrapartida, o não cumprimento das metas pode gerar acréscimo de 10% nas penalidades, independentemente da abertura de processo administrativo sancionador.
Importa destacar que a guinada regulatória não teve início com a RN 623/2024. A RN 579/2023, ao extinguir a fase de classificação residual da NIP, consolidou a vinculação entre a resposta “não resolvida” e a instauração de processo administrativo sancionador. Com a aprovação da nova metodologia na 608ª Reunião da Diretoria Colegiada da ANS, passou-se a incorporar 50% das demandas classificadas como não resolvidas no cálculo do MGA, mesmo antes de qualquer verificação técnica pela Diretoria de Fiscalização (DIFIS).
Os impactos desse novo desenho normativo já são evidentes. Dados públicos da ANS revelam que, no 4º trimestre de 2024, houve aumento de 25% no número de operadoras enquadradas nas faixas mais críticas do MGA em comparação ao trimestre anterior. Isso evidencia que a percepção do beneficiário está operando como gatilho direto de penalização, inclusive para operadoras que, tecnicamente, não apresentariam desconformidades.
Saiba mais:
Em simulações disponíveis a partir dos microdados setoriais da própria ANS, observou-se que, em determinadas operadoras, mais de 70% das NIPs classificadas como “não resolvidas” foram posteriormente tidas como improcedentes ou sem indício de infração após análise técnica. Além disso, os dados consolidados no Painel da Garantia de Atendimento mostram que aproximadamente 50% das NIPs ditas “não resolvidas” não são confirmadas como procedentes pela DIFIS¹. Tais evidências colocam em xeque a adequação do critério utilizado.
Sob a ótica dos consumidores, é inegável que a incorporação de indicadores baseados em sua experiência — como ocorre na metodologia da NIP e em iniciativas de monitoramento assistencial —amplia sua voz no processo regulatório, promovendo maior transparência, responsabilização e alinhamento com os princípios da regulação responsiva. Ao conferir protagonismo ao beneficiário, o sistema sinaliza que o valor da saúde suplementar não está apenas na eficiência operacional, mas também na percepção de qualidade e no respeito às expectativas do usuário.
No entanto, essa abertura não pode prescindir de critérios técnicos sólidos e da mediação institucional adequada, sob pena de fragilizar a própria legitimidade regulatória que se busca reforçar. Prestadores e operadoras alertam, com razão, para os riscos de decisões ancoradas em percepções isoladas, subjetivas ou não auditáveis, especialmente em um setor repleto de assimetrias informacionais e disputas interpretativas sobre o cumprimento de obrigações contratuais.
Nesse sentido, um modelo regulatório responsivo e eficiente precisa ir além da simples escuta do usuário: ele deve promover a corresponsabilização informacional. Isso significa conscientizar os consumidores sobre os impactos sistêmicos de suas manifestações, ressaltando que cada reclamação não é apenas uma expressão de insatisfação, mas um dado regulatório com efeitos práticos — inclusive na definição de condutas fiscalizatórias, reputação institucional e eventual imposição de sanções. Tal como o regulador deve escalar suas respostas com proporcionalidade, os usuários também devem ser chamados a compreender o peso e a consequência de sua voz no sistema.
Conciliar a valorização da experiência do beneficiário com a previsibilidade, a segurança jurídica e a justiça técnica na avaliação das operadoras é, portanto, um dos principais desafios da regulação responsiva aplicada à saúde suplementar. E isso demanda não apenas instrumentos sofisticados de escuta e análise, mas também estratégias de educação regulatória, capazes de transformar o usuário de um agente passivo em um co-regulador consciente e comprometido com o equilíbrio do sistema.
Para avançar nessa direção, é essencial que o protagonismo conferido à experiência do beneficiário venha acompanhado de instrumentos técnicos que assegurem equilíbrio, legitimidade e previsibilidade às decisões regulatórias. A escuta ativa, embora fundamental, não pode substituir a análise técnica qualificada, especialmente em um setor marcado por elevada complexidade assistencial e contratual.
Nesse sentido, propõem-se algumas medidas concretas. Em primeiro lugar, a incorporação de indicadores técnicos complementares aos dados perceptivos, como o tempo médio de resposta, a taxa de resolutividade efetiva e o índice de reincidência, permitiria uma leitura mais precisa e multifacetada do desempenho das operadoras. Esses indicadores operariam como contrapesos analíticos, contribuindo para uma avaliação regulatória mais justa e fundamentada.
Além disso, a promoção de programas contínuos de capacitação em boas práticas de atendimento e resolução de conflitos deve ser incentivada, com o apoio da própria Agência Nacional de Saúde Suplementar. A realização periódica de workshops e eventos técnicos, reunindo operadoras, prestadores e representantes de beneficiários, pode fortalecer a cultura de cooperação e induzir melhorias qualitativas na interação com o consumidor.
Outro aspecto central refere-se à transparência na metodologia de avaliação das Notificações de Intermediação Preliminar (NIPs). A publicação clara dos critérios classificatórios, associada à implementação de mecanismos de auditoria independentes e revisão técnica, contribuiria para elevar a confiança dos agentes regulados e assegurar estabilidade às regras do jogo. A previsibilidade das consequências regulatórias é um elemento-chave tanto para a conformidade voluntária quanto para a sustentabilidade do modelo.
Não há dúvidas de que o movimento promovido pela ANS nos últimos anos representa um avanço importante na direção de uma regulação mais sensível à experiência do beneficiário e orientada por resultados. A centralidade atribuída à percepção do usuário, a valorização da resolutividade e o uso de indicadores de desempenho como ferramentas de indução à conformidade revelam uma tentativa legítima de modernizar a atuação estatal no setor.
Contudo, os critérios atualmente utilizados para a aferição desse desempenho ainda carecem de maior precisão técnica, objetividade metodológica e estabilidade normativa. A centralidade conferida à NIP, se não for acompanhada por rigor técnico e mecanismos robustos de correção de distorções, pode resultar em desequilíbrios sistêmicos e respostas regulatórias excessivamente punitivas — o que contraria os fundamentos da regulação responsiva.
A construção de um modelo regulatório justo e sustentável exige, portanto, o equilíbrio entre estímulo à conformidade, proteção ao beneficiário e racionalidade operacional. Esse equilíbrio não pode ser alcançado apenas por meio da intensificação do controle, mas por uma governança regulatória que valorize a qualidade da informação, a transparência decisória e a coerência entre fins e meios. Somente assim será possível consolidar uma agência verdadeiramente técnica, moderna e orientada à efetividade.
Referências
1. Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Painel de Dados Abertos. Disponível em: <https://dadosabertos.ans.gov.br>. Acesso em:19 maio 2025.
2. AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992.
3. ANS. Nota Técnica nº 3/2023/COESP/ASSNT-DIFIS/DIRAD-DIFIS/DIFIS. Processo SEI nº 33910.038994/2023-28.